(Monólogo Harpa, Cena nº 15)
Ainda hoje, logo cedo, retomei a leitura em Mikhail Bakhtin. E ele diz que: “O discurso se molda sempre à forma do enunciado que pertence a um sujeito falante e não pode existir fora dessa forma.” É... E o que falar do enunciado que não traduz a enunciação?
Eu me lembrei do início do nosso namoro: Você passava e me olhava... Outro dia, passava e acenava... Outro dia tomou coragem e me convidou para almoçar... Outro dia me perguntou o que eu achava do tempo, do calor que fazia... Outro dia guardou um lugar para que eu pudesse sentar perto de ti... Outro dia outra coisa e outras coisas em outros dias...
Eu me lembrei de quando eu amava ver você procurando-me lá no meu trabalho, para saber se estava tudo bem, se tinha algum problema, se estava tudo certo com aquele documento! Você me perguntava essas coisas, essas coisas eram seus enunciados, mas as suas enunciações me perguntavam outras coisas.
Um dia, quando estávamos em uma daquelas reuniões demoradas que a gente sabe a hora de chegar, mas não sabe a hora de sair... Você chegou junto a mim e perguntou: “Você quer um cafezinho?” E eu respondi rapidamente: “Sim, quero!”-e respondi no mesmo tom da pergunta! E pus-me a olhar para você, para suas expressões, para suas enunciações -.
E eu li no enunciado dos seus olhos e do seu corpo por inteiro que você queria mesmo era me perguntar se “Eu não queria você?!.” Você tirou o “você’’ e colocou no lugar o “cafezinho’’... Que troca! A palavra trocada não trocou o sentido da enunciação.
E foi isso que, naquele dia, me levou a ficar na frente do elevador -que toda hora abria a fechava as portas-, para dar tempo de você se aproximar e então podermos descer ou subir, tomando fôlego para um enunciado repleto de enunciação amistosa.
E então, naquele dia, decidimos que iríamos nos amar, aliás, foi a enunciação quem anunciou esse enunciado!... E foi muito lindo nos ver daquele jeito que nenhum enunciado se atreve a descrever!
E na hora em que o amor se instaurou em nossos corpos, sentimos que não precisamos de enunciados... Tínhamos as enunciações. E o que mais queríamos? Tudo já estava dito. Dito, claro que não! Tudo estava Sentido, Percebido, Enunciado!
E por muitas tardes e noite viajávamos nos mares das enunciações... Pousávamos em ilhas rodeadas de lençóis, perfume e pétalas... E o nosso oceano era muito distante da terra firme e as nossas enunciações em forma de sentidos ganhavam uma temporalidade diferente.
Lembro-me nitidamente que o contorno dos teus olhos já expressa tudo e muito mais. Prendia-me trazendo-me para mais perto e soltava-me fazendo-me ser admirada... E as tuas mãos, nossa como falam (risos). Elas não anunciam o que vão fazer. Elas simplesmente fazem acontecer!
E foi assim... Encontros, comunicações, enunciações que no tempo ou fora do tempo acompanharam o ritmo im-posto pelo nosso desejo. Éramos a expressão da natureza humana e o nosso estar-junto, o nosso romance, não passava por turbulências amedrontadoras porque não analisávamos heterogeneidades e buscávamos em nossas próprias sombras, as réplicas que nos confundia.
Um dia eu comecei a notar que as horas chegavam, mas não mais traziam você. O tempo mudava, folhas balançavam ou ficavam paradas, árvores estáticas sem florir ou com flores já não mais vistas por mim... Notei que quando queria, o cotidiano sabia ser perverso e inexplicável... Senti então uma tristeza profunda da qual eu não precisava falar... Todos sentiam o quanto meu corpo sofria... Era o enunciado totalmente desnecessário à minha fala, diante da enunciação totalmente carente do meu corpo!
Não cabia mais eu me arrumar, procurar um espelho para retocar os traços belos, arrumar o cabelo deixando a nunca a mostra... Você não mais me procurava, não me olhava, não me admirava, não buscava mais saber de mim. Isso foi me matando aos poucos! E uma morte difícil de aceitar, porque eu não estava debaixo de 7 palmos de terra. Eu estava debaixo de mil perguntas sem respostas claras que me dissessem o que realmente aconteceu.
Agora eu é que me pergunto isso: “Para que perguntas e respostas?” Os enunciados fugiram porque você fugiu de mim, foi se esconder em alguma ostra pensando ser pérola. No entanto, as enunciações estavam em você, na sua ausência presente!
Foi difícil acreditar, aceitar que a enunciação de agora era tão diferente das enunciações de outrora! Mas o que fazer? Mas como mudar? Mas como voltar o tempo? Mas como parar o relógio?
Um dia eu vi você passando tão apressado que pareceu tropeçar em si-mesmo! Está em fuga, pensei! Está indo ver alguém, imaginei! Está indo para não voltar, concluí! Que não seja para aquele nosso lugar, clamei! Então busquei as poucas forças que ainda restavam em mim e achei por bem abandonar você, suas enunciações e abandonar em mim as minhas incrédulas certezas!
Eu me peguei ensaiando várias vezes: Se algum dia ele aparecer a minha frente e me perguntar: ‘O que você tem?’ Eu direi: “Nada!”. Quando me perguntar: “Porque você estar assim?”. Eu direi: “Por nada, nada não!”. Quando insistir na pergunta, afirmando: “Você está diferente!”. Então direi: “É impressão sua!”. E o diálogo vai ficar assim: Você querendo saber e eu querendo que você não saiba.
Que engano! É possível, alguém enunciar sem conter a enunciação? O enunciado, muitas vezes, não comporta a enunciação.
E a enunciação... Ela vai além do enunciado. Ela fala por si só. Não precisa de palavras, argumentos, validações. A enunciação não se prende, não se rapta, não é refém de palavras que fogem da boca ou de gestos descompassados que surgem para enganar talvez o ouvinte, mas nunca o falante! Ou melhor: Talvez o falante, mas nunca o ouvinte!
Eu me peguei pensando várias vezes se eu deveria ou não deveria procurar por você e dizer-lhe o quanto você me magoou e me ofendeu com esse seu jeito crasso de ser. Foi nesse instante que tive uma iluminação que me salvou a vida e retirou de mim todo um tormento que me assolava a alma.
Escrevi então, alguns enunciados que diante de ti, afirmam as minhas intenções e validam as minhas enunciações, e, diante de mim, negam as suas intenções e invalidam as enunciações que são desejadas por mim. Esse seu negar e invalidar, constituem uma verdade insistente, que me queima a alma, me desespera, me ausenta de mim.
É assim ...
Você, o amor e eu ...
Não nos bastamos e procuramos sinais
Em aceânos de cálidos encantos!
Buscamos asas, queremos não plano
Voar em planos que tocam o infinito!
Levamos um tempo amargo e perdido
a desviar os prantos de tantos enganos
que no norte sem norte, nos deixou, cair!
Vivemos uma delícia vulcânica quando
nas tardes de ontem, mergulhamos sentidos,
Que se incendiavam na mais pura explosão da paixão!
-Quando os corpos não tinham segredos e sem segredos,
ignorávamos o minuto depois ... Era o futuro do futuro, poético!-
Retiramos o amargo dos tons da pele
Em incertos sorrisos de muitas certezas...
E desfrutamos o que tínhamos de mais belo em nós dois:
-Nosso jeito inteiro, secreto, intenso de suave bem-querer,
Repleto de um quero-mais, um volta-logo, e, para-sempre!-
Hoje... Nós dois numa intensa saudade de nós ...
Alastramos, no firmamento dos sonhos, asas que
mesmo sem se tocarem, ainda se procuram e se aquecem
posto que infinitas, esperam e desejam, pousar em sombra!
E se algum dia estes enunciados caírem em seus olhos que você possa lê-lo e sentir o que a enunciação sente falta, clama, sugeri, tem saudade e tem vontade de encontra-te mais uma vez!
Como vês, ainda sonho com o pouso de nossas sombras... Que erro há nisso?! Mas para não me perder de mim, espero que meu corpo se acolha em outras enunciações antes que o sol se ponha!
Poema: Josanne Morais (inspirada: Poema ‘’Anjo’’ e Música ‘’Te Devoro’’).